O alerta é geral e, embora nenhuma entidade ou especialista confirme um desequilíbrio ambiental, algo está ocorrendo no Pantanal de Mato Grosso do Sul. Segundo uma série de relatos expostos a seguir, o histórico de ataques de onças-pintadas e invasões à áreas urbanas tem aumentado ano após ano desde que esta década começou, sendo os dois últimos meses o ápice da tensão entre humanos e felinos.
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Enquanto ninguém dá respostas sobre o que de fato está acontecendo no coração da maior planície alagada do mundo, as onças seguem entrando em cidades, rodeando casas e exterminando cachorros. Quando os cães se esgotam, elas partem para os galinheiros, mas, e quando as galinhas acabarem, qual será o próximo alimento?
É o que se perguntam ribeirinhos que vivem em uma comunidade isolada no Pantanal da Serra do Amolar, em Corumbá (MS). Porém, em bairros urbanos do município, a mesma questão tem inquietado e apavorado residentes.
Do outro lado do Estado, em Aquidauana (MS), cidade conhecida como portal do Pantanal, a aparição recorrente de onças e o sumiço cada vez mais constante de cachorros, bem como o número de ossadas de pets encontrados pelos bairros, também têm inflamado a angústia e feito os munícipes viverem apreensivos.
O estopim responsável por dar alarde ao imbróglio entre humanos e animais foi o caso de Jorge Ávalo, caseiro morto por uma onça-pintada em abril deste ano no pantanal do Touro Morto, entre Aquidauana e Miranda (MS). Tratada como isolada, a “ocorrência à parte” está se mostrando um problema real que nem todos levam a sério, ainda que nenhuma outra onça tenha voltado a atacar um ser humano.
Contudo, na avaliação dos moradores, o cenário indica que falta pouco para isso voltar a acontecer.

Biólogos dizem uma coisa; moradores dizem outra
Para alguns especialistas e conservacionistas representantes do Pantanal, as situações denunciadas pelos pantaneiros sempre aconteceram – a diferença é que agora todos estão mais sensíveis ao assunto como consequência da fatalidade que vitimou Jorge Ávalo.
Além disso, seria imprudente falar em desequilíbrio ambiental, pois não se sabe ao certo se os registros de ataques realmente aumentaram ou só estão sendo mais relatados que o habitual.
Sempre que o acidente de Jorginho é mencionado, a ceva é citada como contraponto para o ocorrido. No entanto, a reportagem do Jornal Midiamax conversou com moradores que vivem o problema na pele, não alimentam as onças e estão tendo seus animais devorados pelos felinos quase diariamente em Corumbá. Segundo quem mora há mais de quatro décadas na região, algo parecido nunca aconteceu antes.

Cinquenta anos vivendo no mesmo bairro não dão a uma cozinheira respaldo suficiente para afirmar que jamais testemunhou a presença de onças-pintadas por ali e, muito menos, o ataque frequente a cachorros? Com os cães também sumindo pelo mesmo motivo em Aquidauana, o cenário se estende e confronta os argumentos do fato isolado.
Afinal, por que as onças estão indo para lugares habitados por seres humanos? Conforme biólogos ouvidos pelo Jornal Midiamax, o comportamento natural dos felinos é justamente fugir e se afastar das pessoas por instinto. Então, qual a razão para esses animais terem perdido o medo em áreas onde não são alimentados e nem domesticados? Seria a falta de alimento no Pantanal?
Perceba o número de perguntas até aqui. Todas sem resposta.

Superpopulação, falta de comida, ou os dois?
Enquanto o silêncio por parte das autoridades ecoa, as comunidades pantaneiras notam a diminuição de presas naturais da onça-pintada no Pantanal, mesmo que nenhuma pesquisa tenha confirmado a impressão. Diante do que veem com seus próprios olhos, há também a suspeita de que esteja havendo uma superpopulação de onças no bioma, já que os felinos são predadores de topo e não possuem predadores naturais.
Em relação à alimentação, de acordo com a ONG Onçafari, que monitora onças-pintadas na Caiman Pantanal, em Miranda, as principais refeições dos felinos da região são, em primeiro lugar, os jacarés, e as capivaras em segundo. A alguns quilômetros dali, essas espécies estariam ficando escassas.

Conforme depoimento de Roberto Carlos Arruda, que vive na Serra do Amolar em Mato Grosso do Sul e já foi atacado por uma onça em 2002, o felino tem sido visto com maior frequência pelos ribeirinhos desde 2022, não apenas na natureza, mas também em suas casas.
“Não está dando mais para ter galinha, cachorro e outros animais domésticos, pois ela os come, já que não tem o que caçar. Jacaré e capivara estão escassos nesse pedaço, direto vemos as pegadas das onças perto das casas; tem muitas habitando ao redor da Serra do Amolar, precisamos manter distância delas”, declarou ele ao portal Mongabay, agência americana de notícias sobre conservação e ciência ambiental.

Falta monitoramento aos animais do Pantanal?
A ponderação de Roberto levanta mais um questionamento: há alguma instituição que monitore a população dos répteis e dos roedores na natureza, além das outras incontáveis espécies pertencentes ao bioma?
Caso a escassez realmente esteja ocorrendo, além das queimadas que devastaram a biodiversidade do ecossistema e provocaram secas extremas nos últimos anos, haveria outro fator para justificar a suposta diminuição populacional dos bichos que fazem parte do cardápio básico dos felinos?
As dúvidas expõem a falta de vigilância e acompanhamento aos animais no Pantanal, enquanto, em parte dele, as onças-pintadas têm seu dia a dia observado por meio de colares com GPS através da ONG Onçafari, na Estância Caiman, onde ocorre o turismo de contemplação.

Muita onça pra pouca comida?
Os mesmos moradores que percebem a possível diminuição de presas suspeitam ainda da superpopulação dos felinos. Sem nenhum predador natural, há quem acredite que as onças tenham se reproduzido a um ponto em que a quantidade de alimento não é suficiente.
Isso, aliado ao declínio de abundância de comida em decorrência das queimadas, poderia explicar a explosão de ataques a cachorros em áreas urbanas? Tem onça demais pra comida de menos?
Hoje, estima-se que haja cerca 4 mil indivíduos de onças-pintadas na natureza pantaneira, mas o número é incerto e não chega a ser cravado por nenhuma instituição. Ainda assim, a espécie é classificada como “vulnerável” pelo MMA (Ministério do Meio Ambiente).
Cabe destacar que um estudo do Instituto de Biociências da USP revelou que 79% das áreas habitadas pelas onças-pintadas sofreram com os incêndios no bioma em 2020. Com a persistência das queimadas nos anos posteriores, a porcentagem do território impactado pode ter aumentado.
No que tange às especulações de superpopulação, mais uma vez, dados que embasem a percepção dos sul-mato-grossenses que estão in loco ainda não foram apresentados. Porém, sobre a escassez de alimento, Diego Viana, médico-veterinário e doutorando em Ecologia e Conservação na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), tem um ponto.
“Após os megaincêndios no Pantanal, as onças-pintadas ampliaram sua área de ocupação em busca de alimento, devido à escassez de presas naturais, como queixadas e veados, que diminuíram após os incêndios de 2020. Essa mudança no comportamento pode ter levado as onças a ocupar zonas de borda e áreas próximas às comunidades humanas, onde encontram animais domésticos mais vulneráveis”, evidencia o pesquisador em depoimento ao portal Mongabay.

Panfletos orientam humanos, mas quem contém um animal selvagem com fome?
Para prevenir possíveis ataques, áreas pantaneiras vulneráveis à presença de onças têm recebido informativos e orientações de entidades como IHP (Instituto do Homem Pantaneiro) e FMAP (Fundação de Meio Ambiente do Pantanal). Nas cidades e regiões remotas, moradores são instruídos a como agir ao se deparar com uma onça e o que fazer para afastá-la sem riscos. Panfletos ainda são deixados com todos os protocolos de segurança a serem seguidos.
Só que, historicamente, essas pessoas respeitam e sabem como se portar diante do avistamento do felino. Informação, é claro, nunca é demais, mas quem é que contém um animal selvagem com fome?
Responsável por desempenhar um papel crucial na pesquisa, monitoramento e conservação da onça-pintada e outras espécies de onças no Brasil, o iCMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) não possui medidas específicas para o Pantanal, mas opera em conjunto com as organizações e instituições de pesquisa que atuam no bioma.
Ao Mongabay, Rogério Cunha de Paula, coordenador do ICMBio/Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros), ressalta que o Instituto não tem como agir na região sozinho. “Ao contrário, é em conjunto com diversas instituições e o governo do Estado”.
Convivência entre onças e humanos não pode ser romantizada, alerta comunidade
A coexistência entre humanos e onças no Pantanal remonta a pelo menos 3 mil anos e, nos registros mais recentes, essa relação nunca esteve tão estremecida em Mato Grosso do Sul.
Um dos cases mais alarmantes das últimas semanas é o pedido de socorro da Associação de Mulheres Artesãs da Comunidade Barra São Lourenço “Renascer”, na Serra do Amolar, que clama a ajuda das autoridades pelo fato das onças estarem matando animais menores e entrando nas casas. Nos últimos anos, desde 2020, mais de 60 cachorros foram abatidos e agora as galinhas têm sido alvo da refeição.
“Nós respeitamos a natureza, e as onças fazem parte deste santuário ambiental. Ninguém é contra a preservação. Mas a vida humana igualmente precisa de cuidado. Estamos com medo. Pelas pegadas ao redor das casas, parece que ela não está sozinha, pode estar com filhotes”, diz um comunicado publicado nas redes sociais da Associação.
As representantes ainda chamam atenção para a forma como a questão tem sido abordada. “Não dá pra conviver desse jeito, sem apoio do poder público. Nossa existência não deve ser romantizada por quem pouco conhece a realidade do bioma. Precisamos manter a vida na comunidade com dignidade, segurança e equilíbrio entre gente e bicho”, declararam as ribeirinhas no mês ado.
Elas dizem ter acionado órgãos responsáveis, mas que nada fizeram para contornar o imbróglio. Assim, a pergunta (mais uma das tantas) que surge é: por que ninguém está ouvindo o grito dessas pessoas?
Grito de socorro: tem alguém ouvindo? E quem está gritando?
Não tão longe dali, na área urbana de Corumbá, alguns moradores decidiram agir para se proteger. Com a eficácia não comprovada das ações de orientação, os munícipes têm tomado atitudes como adotar um toque de recolher por conta própria, além de outras medidas de prevenção mais caseiras.
Enquanto nada efetivo é feito, o medo permanece, assim como as indagações sem esclarecimentos significativos, até que alguém investigue de fato o desequilíbrio no ecossistema e devolva a segurança tanto para as onças quanto para os pantaneiros.
Ainda que o ataque a Jorginho não tivesse acontecido, o cenário atual não depende da fatalidade que vitimou o caseiro e provocaria o mesmo medo em quem vive nas regiões afetadas.

Com onças exterminando cachorros e partindo para as galinhas, quando as aves acabarem, qual será a próxima fonte de alimento dos felinos?
Aliás, com a possibilidade de escassez alimentar, não estariam as próprias onças do Pantanal pedindo socorro ao invadirem casas e até comerem um ser humano?
Afinal, de quem é o verdadeiro apelo? Dos animais saindo de seu lugar seguro no meio da mata ou das pessoas amedrontadas por sua constante presença?

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